O Segundo Sol: O Ilógico Mirassol Sob Outra Luz
Não era pra ser grande coisa — ao menos não foi para a tabela — o jogo do Mirassol contra o Flamengo pela última rodada do Brasileirão. O visitante, eneacampeão, havia garantido a taça dias antes. O Mirassol, embalado por uma campanha histórica em seu ano de centenário, já havia carimbado a vaga direta para a Libertadores de 2026. Na aritmética fria do campeonato, não havia ameaça nem promessa: a tabela estava resolvida para os dois lados. No entanto, a partida tinha um brilho próprio, embora deslocado, um desses lampejos do calendário que o futebol inventa. A era dos pontos corridos, é verdade, não costuma guardar tantas boas histórias assim pro fim do ano, mas promoveu, em jogo de seis gols e honras repartidas, uma espécie de revelação tardia da competição, uma piscadela do universo, que disse aos seus protagonistas: vocês percebem o que fizeram?
Quis o destino que os dois mandantes invictos se encontrassem justo no final, no dia 6 de dezembro de 2025. O Rubro-Negro enviava seus titulares para Doha, onde perseguiriam um sonho que, para o time da casa, ainda soava como ficção científica, embora se faça necessário dizer que, há poucos meses, também lhe parecia fantasiosa a hipótese de competir nos maiores cenários do continente. Mas quem vai entender essa coisa de sonhos? Às vezes surgem como portas que se abrem em momentos inconvenientes; às vezes, luzes distantes, fortes demais para serem ignoradas. Pois bem, desembarcaram os garotos, as crias do ninho, cheios de disposição para enfrentar o Mirassol no Maião — esse palco que, nessa temporada, aprendeu a esticar o tempo.
O confronto foi um deleite para olhos sedentos. Única partida do sábado, como quem se recusa a participar da rotina do domingo, preferindo um horário só seu. Não valia nada, e talvez por isso mesmo valesse tudo. Há jogos assim, em que a irresponsabilidade circunstancial devolve ao futebol aquilo que ele tem de mais íntimo: o prazer de existir. Algo que remete às peladas da infância mesmo, camisa contra sem camisa, travinhas de chinelos no asfalto, ali onde se formam os momentos mais memoráveis do caminho provável de um jogador brasileiro. Apita o árbitro e fim de papo: 3 a 3. Um placar que parecia feito sob medida para que ninguém saísse dali se sentindo derrotado — nem mesmo o tempo. Ambos os técnicos, dando seus primeiros passos na Série A, eram também concorrentes ao prêmio de melhor treinador. Filipe Luís e Rafael Guanaes, estreantes, estelares, presságio de uma crença nacional no frescor das novas ideias. Não finjo que não me surpreendi.
O Mirassol chegou aos 67 pontos. E 67 pontos, veja só, foram suficientes para seu adversário da noite, o Flamengo, ser campeão brasileiro lá atrás, em 2009. Imagino, naquele ano, um torcedor qualquer do Leão Caipira, distraído, alheio ao Brasileirão, talvez lidando com suas próprias urgências, passando os olhos por uma tabela que jamais ousaria prometer aquilo que só lhe seria entregue quatorze anos mais tarde. Ilógico. O Mirassol é ilógico. Ou lógico demais para quem ainda insiste em racionalizar o futebol.
Muito se fala do ano que vem. Do acúmulo de competições, das viagens mais longas, do pouco tempo para treinar, do cobertor curto e da gravidade que costuma puxar de volta os clubes que se atrevem a voar cedo demais. Prudência, um passo de cada vez, planejamento de longo prazo. Já vimos esse filme antes. Quantas equipes já não caíram ao tentar alcançar o sol com asas de cera? Será mais uma dessas portas que se abrem em momentos inconvenientes? Essa fresta inesperada, surgida antes da hora, deslocando planos e antecipando desafios… alterando o tamanho do sonho. O alerta faz sentido. A realidade é dura, o calendário é cruel, e os pés costumam congelar antes mesmo que o corpo perceba a altura. Ainda assim, há portas que, uma vez abertas, já não permitem recuo.
É que o segundo sol, mais do que um símbolo, é um novo modo de ver. É quando o olhar se ajusta e percebe que a luz não vem apenas de onde deveria vir. De repente, há mais um astro no céu. Essa luz distante, intensa demais para ser ignorada, é que mobiliza torcedores, simpatizantes, fanáticos pelo esporte. Não como promessa de permanência, mas de experiência, memória. Menos um plano a ser seguido e mais um clarão súbito que reorganiza o olhar — avançar é arriscado, mais ainda é nega-lo. Que o torcedor rejeite, então, a frieza das estatísticas e das projeções. Que não queira saber o que esperar do amanhã, que esteja ocupado demais com essa questão do agora. Esse agora luminoso, improvável. Um agora em que um clube do interior, que há poucos anos não tinha divisão para jogar, decide ensinar ao país que fé, organização e um punhado de jogadores outrora preteridos (mas especialmente valiosos), são capazes de mover eixos, de deslocar certezas, e de transformar um bom planejamento numa história digna de ser lembrada.
Realinhando as órbitas (e a lógica), mas bagunçando também, que venha esse segundo sol. Porque, quando chegar — e ele sempre chega para quem ousa olhar para cima —, entenderão de vez que o Mirassol, esse danado, ilógico, encontrará sempre um jeito de brilhar nas nossas lembranças. E isso basta, por enquanto. Por agora. O amanhã espera. O sol, não.
Foto: JP Pinheiro / Agência Mirassol
